quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

O fim do natal digital

O dia amanheceu quente. Natal, verão, compras, tudo isso ao mesmo tempo agora atordoa qualquer um, tanto que Juvenal nem percebeu a febre do filho. O coitado teve que berrar seu diagnóstico para ser ouvido.

- Pai, peguei uma virose braba. Minha febre tá batendo 38 e meio, dá pra dar uma forcinha aqui?
Assustado, o pai levantou um pouco o couro cabeludo, logo acima da nuca, e trocou o chip de festas natalinas pelo de medicina infantil. Pôs a mão na testa e nas faces do filho, mediu a pressão com o polegar no pulso do garoto e sentenciou: 

- É verdade. Deve ser mesmo alguma dessas viroses que andam por aí.

O pai sabia que o filho também estava usando o chip de medicina infantil, fez aquele misancene todo só pra demonstrar afeto ao seu rebento.

- E então, o que o Sr. Acha, Doutor?
- Um antitérmico basta, é uma virose simples. Mas estou com o corpo mole, pai, enfraquecido. Vou precisar de alguma ajuda. 
- Tudo bem. Vou deixar a Marilda tomando conta de você e vou trocar meu chip, botar o de economista, para fazer as compras de natal. Fica tranquilo.

Cumprindo o prometido, deixou o garoto com a empregada depois de dar ordens expressas para que ela também acoplasse o chip de medicina infantil.

- Isso é bobagem, seu Juvenal, eu sei muito bem cuidar de criança com febre – disse a empregada enquanto ajeitava o dispositivo – Além do mais, Doutor, estamos preparados para qualquer eventualidade, concluiu já como médica.

Passou quase o dia inteiro no shoping, como economista, avaliando os preços, comparando-os e considerando o possivel impacto de cada compra no processo de formação de poupança, geração de emprego e no reflexo de tais transações no mercado financeiro internacional. Fez muitos cálculos. Só trocava o chip de economista pelo de piloto na hora de se transportar entre um shoping e outro. A cada pausa recebia as mensagens transmitidas via wirless por Marilda, diretamente para seu chip, à respeito do estado de saúde do Garoto. Tudo corria muito bem, graças a Deus. 
Acabou comprando coisa paca, enchendo o carro de presentes para a família toda e só não comprou remédio por considerar denecessário, principalmente depois que identificou um aumento sazonal de preços devido a demandas no setor de exportação dos laboratórios. Poderia comprar mais barato depois.

Chegou em casa e deu de cara com mulher, na cozinha. Trocou rápido o chip para amante latino e começou a agarrar a patroa, cheio de paixão, mas ela, que acabará de chegar de uma palestra, estava usando o chip de politicamente correto e o repeliu imediatamente.

- Comporte-se Juvenal, disse, enquanto trocava, ela mesma, o chip dele pelo de marido responsável, fazendo com que fosse cuidar dos pequenos reparos necessários à casa para a festa de natal.

O filho já estava bem, completamente sem febre, e desfrutava o chip de criança feliz fazendo algazarra na piscina. 
Terminado os afazeres, Juvenal e Marisa, a mãe, foram exercer sua responsabilidade e correção na beira da piscina, vendo o filho brincar, e até deixavam transparecer um ar embevecido enquanto conferiam os vários chips de que dispunham no case em suas mãos.
Olhando aquela cena, o filho retirou seu próprio chip, correu até a beira da piscina e empurrou os pais dentro dágua, junto com todos os chips. Enquanto ambos se debatiam o guri foi por trás das nucas e retirou também os chips que ambos usavam, danificando-os para sempre ao joga-los dentro dágua. Os pais ficaram estáticos. De repente, depois de tantos anos, viram-se usando suas próprias personalidades. 
No princípio ficaram assustados, depois riram um pouco e, por fim, gargalharam com as brincadeiras do moleque. 
Aquela altura do campeonato as lojas não estavam mais abertas para a compra de novos chips, por isso a família viu-se obrigada a permanecer careta, os três, sem qualquer adorno tecnológico de realidade virtual. Restritos, enfim, às suas próprias habilidades humanas e sentimentos pessoais. Tiveram a noite de natal mais feliz de suas vidas.

Vicente Portella

sábado, 11 de dezembro de 2010

Milton Nascimento - Caçador de Mim

Autofágico

Preciso arrumar as coisas
A poeira, os CDs, as contas espalhadas
As Pagas e as não pagas
Coisas mortas e coisas avivadas
periodicamente
Na minúcia de cada gesto inútil

Preciso arranjar alguém para bater o tapete
Para abrir vez em quando a janela
E deixar entrar algum ar pela casa
Nem que seja só para reforçar a impressão
De que a mesma dispõe de habitantes vivos

Preciso trocar de lugar os livros
Tirar o pó da estante
Ligar a televisão
Fazer algum barulho
Por mais ínfimo que seja
Para que os vizinhos não percebam
O silencio da solidão

Preciso gritar
Chorar talvez
Ou dar gargalhadas
Para tentar passar a idéia
De que há gente zanzando
Bebendo e se divertindo
No apartamento vazio

Quiçá até seja prudente
Berrar pela janela aberta
Pro povo que anda na rua
- Traga pra cá mais cerveja
Mais coca, vodca e vinho
Vamos brindar a incerteza

Preciso limpar a casa
Tirar, lavar as cortinas
Degelar a geladeira
Jogar muita coisa fora
Por uns quadros na parede
E fugir do apavoramento
Que causa o espaço morto

Preciso enganar o vento
Abrir a porta e faze-lo
Passar por dentro da sala
Soprar sobre as coisas todas
E sentir-se aconchegado

Preciso ir ao mercado
Preparar comes e bebes
Montar uma mesa farta
Fingir extrema alegria
E esperar os convidados
Ouvindo antigas canções

E então sentar no sofá
Beber minha própria bebida
Olhando os prédios lá fora

A certeza mais amiga
No inverno esta no conhaque
E no verão na cerveja

É fato, se ninguém chega
Ninguém também vai embora.