sexta-feira, 16 de março de 2012

O Deus mercado (Conto)

1

Ariosto encontrou Thomas Morus num Bistrô de Ipanema. Thomas estava ansioso para mostrar o novo software que havia criado. Coisa de louco...  Mostrava ao amigo no laptop. O programa era capaz de identificar o texto escrito e reproduzi-lo em áudio. E mais. Partindo de um banco de vozes pré armazenadas, o operador poderia escolher qual delas reproduziria o texto, em inglês, francês, alemão, russo, polonês, africâner ou português e permitia também o uso de palavras novas por comando de voz, com tradução automática, ou seja, o próprio operador poderia falar, ao invés de escrever, e o programa faria o resto, reproduzindo o áudio na voz escolhida. Thomas lambia a cria, orgulhoso de sua criação, enquanto Ariosto pensava numa maneira de ganhar grana com aquilo. Estava completamente duro, tangenciando o desespero.
No dia seguinte, conferindo as contas que chegavam pelo correio, Ariosto não tirava o tal programa da cabeça. Como ganhar dinheiro com a invenção do amigo? Produzir e vender em larga escala exigia investimento e demorava demais. Vender para alguma empresa especializada poderia ser interessante, embora reduzisse os ganhos, mas também levaria algum tempo. Ele precisava de dinheiro urgentemente. Gás, Luz, telefone, água, todas as contas estavam atrasadas e além do risco de ficar no escuro, com sede, isolado e com fome, poderia ficar também sem casa. O aluguel também estava em situação periclitante. Na verdade toda a sua vida estava segura por uma teia de aranha que a qualquer momento se romperia. O caos estava próximo, muito próximo.
Passou as horas seguintes atracado com o computador, escarafunchando a internet em busca de oportunidade. Preciso de dinheiro! Berrava para si mesmo a cada tentativa frustrada de encontrar um bom negócio. Disparou e-mail para todos os cantos oferecendo seus serviços, dispôs para venda na rede as poucas coisas que ainda tinha, vagou por todas as páginas de busca de maneira agoniada, sem conseguir, no entanto, obter sucesso. Até surgiam algumas coisinhas. Mas nunca para ganhar dinheiro suficiente em tempo hábil. Não encontrava, em todo universo virtual, nada que lhe parece minimamente compensador. Tudo se perdia em um universo de desqualificação e sub remuneração.
Programadores se ofereciam por migalhas e as empresas ofereciam ainda menos pelos seus serviços. Estava cada vez mais convencido de que o conhecimento não valia absolutamente nada. Estudar tinha sido um desperdício de tempo e grana. O mercado quer robôs, berrava irritado, e nem querem pagar por isso.
Decidiu vingar-se e invadiu a página de uma grande empresa, uma gigante do setor de informática, e distribuiu insultos impublicáveis. Na área do “quem somos”, comum em sites de grandes empresas, escreveu “Somos sanguessugas e queremos trabalho escravo”. Animou-se com a brincadeira e partiu para outras Home pages.  Para as grandes estatais reservou o termo “parasitas” como palavra chave e para as outras, ladrões, gângsters, bandidos e coisas do gênero. Ao final do dia já tinha feito um estrago institucional considerável, então, consumada a vingança, foi dormir o sono dos justos. Sentia-se mais leve, apesar de continuar sem um centavo no bolso.

2

Uma semana depois Thomas Morus já nem se lembrava do papo com o amigo. Absorto em um projeto novo, manipulava o PC, em casa, diante da TV ligada muito mais por necessidade de companhia do que qualquer outra coisa, mas a entrada no ar de um plantão de noticias lhe chamou a atenção. O prédio de uma mineradora, a gigante Vale do Rio doce, estava na tela. Era um seqüestro. Aparentemente, um grupo de homens armados havia invadido a sede da empresa durante a madrugada e fazia refém um de seus principais executivos. Logo pela manhã, ao chegarem ao trabalho, os empregados encontraram todas as portas trancadas e os elevadores parados, o sistema se segurança havia sido acionado, todos foram impedidos de entrar e o sequestro foi anunciado. Ninguém entra e ninguém sai. Ordem dos bandidos.
As polícias tomaram um quarteirão inteiro da Rua Graça Aranha. Tinha de tudo, Polícia Militar, Civil, Federal e até guarda municipal, esta última, provavelmente, para cuidar do trânsito. As emissoras de TV enviaram, aparentemente, todos os seus repórteres para o local, pois a impressão é de que havia mais jornalistas que policiais. Até o engraxate que trabalhava em frente ao prédio da Vale foi entrevistado e declarou solenemente, em cadeia nacional, que não tinha a menor idéia do que estava acontecendo.
Na falta de informação segura, transmitia-se todas as especulações possíveis. Eram dez bandidos e 18 reféns, daqui a pouco eram 5 bandidos e 20 reféns. Mais à frente 3 bandidos e 30 reféns, as informações mudavam a toda hora. Emissoras convocaram seus especialistas, mas como sequestro é algo raro, pelo menos nestas proporções, não encontraram muitos especialistas no tema, então pegaram curiosos. Qualquer um que já tivesse ouvido falar de tal crime era imediatamente convocado para palpitar sobre a situação e a especulação acabou crescendo em progressão geométrica.
A cada momento a situação ficava pior. Se aproveitando da concentração de policiais em um só evento, os ladrões comuns arregaçaram as mangas e foram ao “trabalho”. A cidade virou um inferno. Assaltos e roubos de carros em toda parte. Centro, zona sul e zona norte viveram um dia de paraíso para a criminalidade. A polícia simplesmente ignorava o apelos das vítimas feitos pelo 190 e a imprensa também não noticiava nada à respeito..
Todas as atenções estavam voltadas para a tragédia da Vale.
Já era quase meio dia quando o negociador da polícia finalmente conseguiu estabelecer contato com aquele que parecia ser o líder dos seqüestradores, através do telefone da presidência da companhia, situada em um dos últimos andares do prédio. O bandido não estava muito a fim de colaborar.
- Quantos reféns você tem? Perguntou o negociador.
- Muitos. Respondeu o bandido.
- O que você quer?
- Dinheiro.
A negociação não era lá muito animadora.

Enquanto fingia negociar com o bandido, a polícia estudava estratégias para invadir o prédio. Após estudos preliminares, chegaram à conclusão que a ação se concentrava no andar da presidência, então arrombaram a porta principal e invadiram o prédio, disparando o alarme geral. O chefe dos bandidos não gostou e ameaçou matar um refém caso a invasão prosseguisse.

- Eu mato um. Eu juro. Ameaçava o bandido pelo rádio do negociador, que estava no viva voz.

Imediatamente, por conta do juramento, a imprensa começou a divulgar que se tratava de um bandido católico e cada emissora convocou um padre para entrevistas que pudessem traçar o “perfil psicológico” do meliante.

A polícia continuava negociando, oferecendo perdão parcial caso os reféns fossem soltos e tentando ganhar tempo enquanto as equipes avançavam sorrateiramente na tomada do prédio. Depois de obter todas as informações possíveis com o responsável pela área, a equipe técnica da polícia tentava burlar o sistema de segurança, buscando uma maneira de chegar ao andar do seqüestrador sem chamar a atenção do mesmo. A coisa evoluía lentamente, mas trabalhava-se com a convicção de que seria possível libertar os reféns e prender o bandido. Tudo era uma questão de tempo.

Thomas Morus começou a considerar a cobertura do sequestro muito chata, apesar da curiosidade, e desligou a TV, voltando a dedicar-se ao computador. Ao abrir seu e-mail recebeu uma mensagem de Ariosto.

“Teu programa vai nos deixar ricos. Perambulei pelas financeiras da cidade e consegui descolar muita grana emprestada. Graças a você vou multiplicar muitas vezes esse dinheiro. Você vai ver. Prepare-se para a fortuna. Champanhe, iates, viagens e mulheres bonitas te aguardam”

“Você tá maluco. Como é que a gente vai pagar esses empréstimos?” Respondeu Thomas.

“Fica tranqüilo. Relaxa e goza. No final das contas você vai me agradecer”


3

A notícia da sequestro em andamento tomou conta do país. Todos os olhos estavam voltados para aquela ação hollywoodiana que acontecia ao vivo, para todo o Brasil, elevando a audiência de TV e rádios à estratosfera. Não demorou para começar a especulação sobre as conseqüências do ato. E se explodissem o prédio? E se os reféns fossem mortos? Será que a Vale pagaria o resgate? Quanto valeria a vida dos executivos para a empresa?
Apesar de ninguém saber ao certo o número de reféns nem quem eles eram exatamente, a comoção era geral. A direção da Vale divulgou comunicado avisando que só se pronunciaria após o desfecho da situação. Nem ela, nem ninguém, contava com dados suficientes para se posicionar. A única informação concreta estava concentrada no negociador, que cada vez mais tinha dificuldades de lidar com a situação. Seu interlocutor fazia exigências inverossímeis e ameaçava o tempo todo a integridade dos reféns.

- Se eu ouvir algum barulho no prédio, se eu desconfiar que vocês vão invadir, eu jogo pela janela a orelha de uma mulher que está gritando aqui. – Dizia o bandido pelo rádio, ainda no viva voz.

A imprensa agora concentrava seu foco em analistas do mercado financeiro. Tendo a mineradora, historicamente, uma das ações mais bem cotadas na bolsa de valores, especulava-se o impacto do sequestro no mercado mobiliário. As ações despencavam e a preocupação era quanto à possibilidade de que um efeito dominó atingisse a cotação de outras empresas. O mercado corria risco. O Ministro da fazenda foi à televisão tentar acalmar o mercado, oferecendo a garantia de que o governo envidaria todos os esforços para garantir a prisão dos bandidos, a libertação dos reféns e estabilidade do mercado. Ninguém deveria se preocupar, segundo o Ministro.
Os acionistas, no entanto, não deram muita atenção às palavras da autoridade financeira máxima da nação e a bolsa despencava vertiginosamente. A maior vítima, é claro, era a própria Vale, que via suas ações esfarinharem-se no mercado sem poder fazer absolutamente nada.
Não satisfeita com a opinião de analistas tupiniquins, a imprensa resolveu consultar estrangeiros. As emissoras enviaram seus correspondentes para a bolsa de Nova York, exportando a especulação para as terras do Tio SAM. Sem entender direito o que estava acontecendo, todos os consultados, com base nas informações passadas pelos repórteres, fizeram analises catastróficas. Da forma com o a coisa era colocada os estrangeiros tinham a impressão de que ocorria no Rio algo padecido com o ataque ao Word Trade Center, só que sem terroristas. Alguns pensaram até que o Brasil estava acabando, dada a natureza afoita dos jornalistas, de tal forma que as previsões jogaram as ações da Vale ainda mais pra baixo, fazendo-as chegar ao  fundo do poço.
Na falta de condições para ajudar de forma mais concreta, pessoas do povo rezavam diante da TV, pedindo piedade aos céus e encaminhando a alma dos reféns que, dado aos exageros dramáticos da imprensa, tinham a certeza de que jamais escapariam com vida daquele bando de facínoras gananciosos. A romaria de populares levando flores para as imediações do prédio, como se uma carnificina já tivesse sido consumada, e os milhões de velas e orações escritas em bilhetes deram a imprensa a idéia de explorar o lado emocional da coisa. Padres, pastores e beatos foram convocados para palpitar sobre o pecado e as virtudes da alma humana. Todos, sem exceção, tinham uma tese para a questão, sobre como Deus castigaria barbaramente os malfeitores e salvaria todas as vítimas, exceto, é claro, aquelas que tivessem contas à acertar com o todo poderoso.
Foi num desse programas, em uma emissora que teve a brilhante idéia de promover o “equilíbrio” entre as opiniões e resolveu convocar um não religioso para o debate, que ocorreu uma situação constrangedora. Perguntado sobre o que sentia diante de tão horrenda situação o entrevistado agnóstico foi sucinto: Nada. Não sinto absolutamente nada. Logo após as interjeições de estarrecimento que ecoaram no auditório a repórter continuou.

- Como assim, nada?   Os reféns estão correndo risco de vida, a polícia está toda concentrada no local do crime, as pessoas estão mobilizadas no país, talvez no mundo inteiro, e o senhor não sente nada? O senhor não está sendo muito insensível? Caprichou a apresentadora.

- Na verdade não. Pode ser que as pessoas tenham visto alguma atrocidade, mas eu não vi nada.

- Como assim?

- Eu só vi um homem falando ao telefone. Um policial. Não vi bandidos, armas, reféns... Não vi um só ato de violência, apenas um exército enorme de policiais em volta de um prédio.

- Mas o senhor não ouviu o seqüestrador fazendo exigências? Ameaçando a vida dos reféns? Nós mostramos isso ao vivo...

- Eu vi um policial falando com alguém ao telefone. Não vi mais nada. O cara com quem ele fala pode estar em qualquer lugar. Não houve sequer um indício de que alguém esteja dentro do prédio.

Só podia ser ateu... Gritou alguém da platéia.

- Eu não sou ateu, minha senhora, sou agnóstico. E isso nada tem a ver com religião.

Isso é coisa do diabo, isso sim... Vociferou um pastor que participava do programa.

Diante da situação constrangedora, a emissora imediatamente tirou o programa do ar e entrou com a programação comercial. Até os telespectadores ficaram assustados, boquiabertos com a falta de humanidade do participante do programa.
A polícia continuava cercando o prédio, embora o negociador não conseguisse mais manter contato com o líder dos criminosos. A cada tentativa o telefone chamava até que a ligação caísse. Já começava a escurecer e a bolsas continuavam caindo. Ao rés do chão na verdade.
Quando escureceu, chegaram o Governador e o secretário de segurança pública. Em entrevista ao vivo ambos afirmaram já ter pistas da identidade do líder dos bandidos. Segundo o Secretário tratava-se de um ex servidor público, indignado com a política de privatizações, que pretendia fazer chantagem com o Governo. Já o Governador garantiu que os bandidos seriam presos e os reféns libertados à qualquer momento.
Eram sete horas em ponto quando as equipes internas comunicaram ao comando da operação ter chegado, depois de arrombar várias portas, ao último andar do prédio, onde supostamente estavam os reféns. Foi quando, inesperadamente, o seqüestrador fez contato pelo rádio.

- Eu sei o que vocês estão fazendo. Se tentarem invadir eu mato todos e me suicido.

- Calma, calma. Gritou o negociador. Vamos conversar.

- Se invadir, todos morrem. Não tem papo... Retrucou o bandido.

Consultados, Governador, secretário e comandante da operação deram a ordem pra invasão.
A polícia colocou escutas nas portas para calcular os movimentos e escolher o melhor ângulo para as explosões. Não se ouvia nada. Havia o temor de que o seqüestrador tivesse cumprido a promessa, apesar da ausência de tiros, e todos estivessem mortos. Mas o Secretário, irritado, ratificou a ordem de invasão.
A população que acompanhava tudo pela TV estava consternada. Mulheres gritavam, crianças choravam, homens ficavam sérios, com semblante preocupado. Todos se perguntavam quantos reféns haviam, se já estariam mortos, se a polícia os salvaria... Todas as dúvidas boiavam no ar.
Explosivos posicionados, um policial deu a ordem e a porta de entrada do último andar transformou-se em uma bola de fogo, assim como as janelas próximas. O povo via pela TV a explosão, ao vivo, e rezava pela alma das vítimas.
A equipe militar completamente equipada ocupou o andar imediatamente, com armas em punho, checando a presença de bandidos e reféns, buscando feridos e possíveis mortos.  Não encontrou nada. O andar estava completamente desocupado e os únicos estragos eram aqueles proporcionados pela explosão do arrombamento.

- Não há ninguém aqui, comandante. Comunicou o chefe da ação pelo rádio.

- Como não há ninguém? Vasculhem tudo.

- Não há ninguém, comandante. Repito. O andar está vazio.

Após o trabalho da equipe técnica, que periciou o local, foram descobertos apenas dois crimes: invasão remota do sistema de segurança e grampeamento de todas as linhas telefônicas. Qualquer ligação para o prédio era desviada imediatamente para o telefone da Presidência.
- E a pessoa que estava falando comigo ao telefone? Onde está ela? Quis saber o negociador.

- Em qualquer lugar, senhor – respondeu o técnico. Havia um software de voz linkado ao sistema. Poderia ser operado à distância.

- A voz. Quero imediatamente uma analise da voz de quem falava comigo. Vamos identificá-lo.

- Já fizemos isso, senhor. A voz pertence à um artista, o dublador do John Travolta no Brasil. Tudo foi reproduzido pelo Software. Não havia ninguém no local do crime. Aliás, nem houve crime. Tudo não passou de uma encenação.

A mídia, estupefata, não sabia como veicular tal notícia. Governador, Secretário, Comandante da polícia, Delegados Federais, ninguém se dispôs a dar entrevistas.
As pessoas em casa ficaram convencidas de que era tudo mentira. A polícia, é claro, havia matado todos, mas ninguém queria assumir a culpa. As orações se transformaram em indignação. As pessoas se sentiram traídas, enganadas, usadas pela imprensa, pelos governantes e pela polícia. Tudo não passou de uma farsa, como no carnaval e nos jogos de futebol.


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4

Ariosto chegou à casa de Thomas alguns dias depois, por volta das 10 horas da manhã. Acordou o amigo com um presente: uma caderneta de poupança no valor de cento e vinte e dois milhões de reais. Thomas achou que estava sonhando, mas depois de lavar o rosto conferiu o extrato e ficou pasmo.

- Cara, onde você arrumou essa grana toda?

- Isso é a metade do que eu ganhei investindo aquela grana que eu peguei emprestado. É a tua parte.

- Como assim, minha parte? Eu não entrei com nada. Foi você quem fez os empréstimos.

- Eu sei. Mas teu software me ajudou a compreender os meandros do sistema financeiro. Investi a grana toda na bolsa de valores e ganhei duzentos e quarenta e quatro milhões com a valorização das ações que eu comprei.

- Cara, tu é muito sortudo, isso sim. Como meu programa te ajudou nisso?
- Analisando os dados. Depois de estudar todas as nuances do programa eu resolvi investir tudo em ações da Vale quando elas estavam em baixa. Deu super certo.

- E o que a gente vai fazer agora? Nem sei como é ser milionário.
- Tudo. Vamos fazer tudo. Vou começar indo para Hollywood. Sou louco para conhecer o John Travolta.