segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Neguinho não quer mais morrer


Boteco. Ao fundo um grupo toca violão e canta. Neguinho entra vagarosamente, com ar tristonho, e se dirige à Heraldo, do outro lado do balcão.

Neguinho – Heraldo, me da um copo aí.

Heraldo – Pô... Você quer só o copo? Não quer nenhuma bebida dentro não?

Neguinho – Não. Só quero o copo. Me empresta aí. Prometo que vai ser a última vez que uso as coisas do teu bar sem gastar dinheiro.

Heraldo – ( Entregando o copo com voz debochada) Sacanagem. Assim eu vou acabar é falindo. (Gargalhada )

Neguinho – (Pega no bolso do paletó uma garrafinha e entorna seu conteúdo no copo que lhe é dado) Heraldo, você já ouviu falar de Moisés Sesyom ?

Heraldo – Já sim. É poeta, né? Do Rio Grande do Norte... Mas não conheço nada dele não. Só ouvi falar.

Neguinho – Pois eu vou te recitar um poema dele... Escuta só. ( Recita com lágrimas nos olhos. Nas pausas cheira a bebida no copo e faz menção de tomá-la. Na mesa do fundo, um artista pontua o poema ao violão. Todos olham para Neguinho )

A morte mata o sultão, arcebispo e cardeal, presidente, marechal, ministro, conde e barão.
 Em tempos matou Roldão, como na história deu.
O próprio Jesus morre. Mata tudo, ó morte ingrata... só não sei por que não mata um infeliz como eu.
Ela mata todo mundo, branco, preto, rico e pobre. Mata o potentado, o nobre; mata o triste e o vagabundo.
Matou Dom Pedro Segundo, matou quem o sucedeu. Capitalista e plebeu, mata tudo, não tem jeito. Mas não mata, por despeito, um infeliz como eu.

Não reserva o cientista, mata sem dó o profeta, tirana, mata o poeta, mata o maior estadista. Mata também o artista, o cego, o mudo, o sandeu...  mata o crente e o ateu, diplomata e titular, mas poupa, não quer matar um infeliz como eu.

Ela mata no Senado, como matou Rui Barbosa. Entra no Congresso airosa, aí mata um deputado. Matou Pinheiro Machado, dele não se condoeu.
Ela jamais atendeu, mata gente, mata bicho, mas não mata por capricho um infeliz como eu.

O violão segue pontuando a fala de Neguinho até a entrada de Antônio no bar.

Antônio – Vamos parar com essa palhaçada aqui ( batendo no balcão ). Heraldo, você ainda não me deu o dinheiro da semana.

Heraldo – E nem vou dar, seu filho de uma puta. Eu não trabalho pra sustentar vagabundo.

Antônio – (Sacando a arma e apontando para o rosto de Heraldo ) Você perdeu a noção de perigo, seu safado? Eu dou um tiro no meio dos teus cornos. Quer ver? Eu quero meu dinheiro.

Heraldo – Que dinheiro? Você trabalha aqui por acaso? Não te devo dinheiro nenhum.

Antônio – Deve sim. (Gritando) Deve sim. Você trabalha na minha área. Quem te da segurança sou eu. Eu quero meu dinheiro agora. Senão vou mandar a milícia dar tiro pra dentro dessa porra a torto e direito até espantar tudo quanto é cliente vagabundo que você tem. Vou mandar os moleques estuprarem todas as mulheres que vierem compra no teu armazém. Vou expulsar todos esses artistinhas de merda daqui. Se você não me der meu dinheiro eu vou transformar tua vida num inferno.

Neguinho, sentado, abaixa a cabeça na mesa e chora compulsivamente. Antônio olha para os artistas no canto.

Antônio – E vocês, seus merdas? (Empunhando a arma) Vão falar alguma coisa?

Todos permanecem calados.

Antônio - E você, Neguinho, ta chorando porque? Nem te dei uma porrada ainda (Gargalha e guarda a arma no cós da calça ).

Antônio – E tem mais... ( Toma o copo de Neguinho ) Quem chora à toa tem que beber é mijo. Me dá essa porra aqui...

Neguinho – (Grita enquanto Antônio bebe a bebida de um só gole ) NNNNNãaãaãaããooooooooooooooo...

Antônio – O que foi, seu merda. Vai chorar porque bebi tua cachaça? (Rindo)

Neguinho – Seu Antônio, (Chorando) eu perdi minha mulher. Ela foi embora...

Antônio – Foda-se... Quem manda ser frouxo.

Neguinho – (Chorando) Ela levou meus filhos

Antônio – Bem feito, otário (Rindo)

Neguinho – (Chorando) O dono da casa que eu morava me expulsou de lá. A mulher levou o dinheiro que era pra pagar aluguel.

Antônio – Foda-se, foda-se, foda-se... Eu to cagando e andando pra tua desgraça, seu merda ( Antônio leva a mão na barriga, acusando dor)

Antônio – Aiii...que dor filha da puta ( Tomba)

Neguinho – (chorando) Eu sou um merda, eu sei que eu sou um merda. Por isso eu vim aqui dar um fim nessa porra.

Antônio- (Se debruçando sobre a mesa) Aíii....tá doendo pra caralho... Chama um médico. ( Se contorce de dor )

Neguinho – Eu sou um merda e o senhor, seu Antônio, é um covarde filho da puta. Quer me esculachar, me esculacha. Mas é uma puta sacanagem o senhor chegar aqui, e assim, sem nenhum respeito ( Chorando), sem nenhuma consideração (chorando), sem nenhuma misericórdia ( Choro compulsivo ), beber a porra do meu veneeeeno  (Grita)

Antônio agoniza e morre.

Um dos artistas dedilha o violão. Câmara no rosto de Neguinho, segue até a mesa, mostrando as mãos de Heraldo, que bota bebida em um outro copo e o entrega.

Heraldo – Toma, Neguinho. Essa é por conta da casa.


OBS: Vou catar parceiros pra filmar e fazer um curtíssima metragem. Que tal o roteiro?...rsrs

terça-feira, 13 de setembro de 2011

Breve adeus

Te quero até que o sol
Me mande luz
Nos olhos outra vez

Pode ser daqui a um mês
Ou amanhã de manhã

Eu quero a flor
Que abre
Dentro de você

Saborear, sorver
Tua avidez pagã

Eu quero o teu gosto
E o cheiro
E a cor
E o teu tempero
Impregnados
Nos sentidos meus

Tudo isso até que a luz retorne

Pra molhar a nossa face
Desfazer os nós do enlace
E celebrar
o nosso adeus.

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

Prazeres

Cansei de pessoas fúteis, 
Carradas de leis inúteis
Gente de matéria plástica ...


Eu quero a vida orgástica, 
Prazeres, beijos,desfrutes...

sábado, 20 de agosto de 2011

Canção da angústia


Cadê a rosa de Carlos
Cadê a flor de Vandré
Cadê o grito de fé
Que eclodia dos bravos

Há cem milhões de escravos
Reféns vagando nos guetos
Sem que se ouça canções
Compostas por insurretos

O crime vem dos castelos
Exploram os favelados
Roubam até flagelados
Negando que há flagelo

Eu quero a rosa de Carlos
Pesando como um martelo
Na alma dos delinqüentes

Eu quero toda essa gente
Pagando, com a liberdade
Pelos vícios do poder

Eu quero a flor de Vandré
Atropelando os canhões
Da farsa e da mentira

Eu quero o poder da lira
Expulsando os vendilhões
Da pátria e da boa fé


Vicente Portella

quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

Canto livre

Quem me dera ter um nome índio
E outro africano
E outro judeu
Quem me dera ter todas as terras
como uma só terra
Como um berço meu

Eu quero muito não ser o estrangeiro
nem ver estrangeiros
em qualquer semblante

Eu quero muito ser do mundo inteiro
E amar por inteiro
cada mero instante

Ai quem me dera soldar as fronteiras
Quebrar as barreiras
que separam os seres
Jogar meu beijo sobre a cordilheira
deixa-lo voar
e descobrir prazeres

Quero mesclar os amores da terra
unificar as línguas
espalhar canções
que possam ser sentidas, percebidas
e reproduzidas 
à plenos pulmões

Quero ofertar ao mundo um canto livre
ombreando as vozes 
em favor da vida

Cheirar a flor que brota escondida,
em plagas distantes,
mas que ainda vive.

Vicente Portella