terça-feira, 2 de novembro de 2010

Todas as mulheres - um monólogo


I

Muito prazer, sou Adélia
Não sou, felizmente, virgem, mas tenho lábios de mel.
Não tenho muitas razões e nem paixões de aluguel
Mas amo terrivelmente as coisas todas que vejo
Nem todas, é bem verdade,
mas quase todas, e beijo, esbanjando intensidade.

-        Meu nome é mesmo Adélia.
     Gosto de dizer pra todos que quero ser dançarina,
     mas brinco de ser felina e gosto mesmo é do dia,
     da noite e da madrugada.
Às vezes chego cansada ao meu ponto de partida
apresentando nas faces
a coloração vermelha.
É o meu sangue aguçado percorrendo minhas veias,
quase que em desespero.
Sigo a vida pelo cheiro que se desprende
do corpo
em suor, chama, centelha...
Sou jovem, balzaca, velha.
Sou o que me der na telha.
Sou o traço que um poeta
rabisca em algum papel de forma aleatória.
Não faço parte da história, pois na verdade eu invento
sempre o meu próprio roteiro.
Amar, amo o mundo inteiro.
Da vida não abro mão.

II

Quando jovem sou a corsa que ansiosa e deslumbrante
atravessa a madrugada lançando mão dos delírios.
Espalho todos os brilhos e cheiros de que disponho.
Atiço os teus hormônios.
Atrevo-me sempre mais.

Rodopiando no cais fumo, bebo, jogo, lanço
meus tentáculos, e danço
com qualquer moça ou rapaz
que cruzar o meu caminho.
Das rosas, retiro o espinho.
Dos cravos, inalo o aroma.
Amo amores de Sodoma, de Madri, de Calcutá...
Da Lapa ao Jardim de Alá.
Amo as luzes do cenário.
Mas, muito além de amar,
eu brigo se necessário
e cobro dos donatários
que exercem o poder meu direito de viver
da maneira que eu quiser.

III

-        Quando balzaca sou chama de atenta sagacidade.
Se antes eu transbordava do cálice a bebida,
agora ela é sorvida com os rigores da paixão.
Exijo todas as loas dos amores triviais
E nunca mesmo,
jamais, permito-me amar em vão.
A ânsia do meu desejo flui de mim eternamente,
mas percebo, sutilmente,
a arte que nos faz gente,
escapar por nossos dedos.

Persigo o amor nos escombros da guerras do dia à dia
mas equilibro meus medos.
Prezo demais meus segredos,
reclamo, rejeito as farsas.
Não permito que me imponham regras de comportamento
e nem acato, calada, vontades que não são minhas.
Já sei ler as entrelinhas dos contratos sociais
e nego a assinatura.
Nem cláusula nem clausura.
Viver pra mim é bem mais que parir bens de consumo.
Ao invés de algum chicote estalando em minhas costas,
quero de bom grado o toque
de dedos ágeis, macios,
na minha nudez exposta.


IV

-        Se me transfiguro em velha sei o segredo das coisas.
Acumulo em meus olhos os raios da eternidade.
E então exorto aos jovens que jamais sejam covardes.
Que revirem o planeta
Revolucionem o universo.
Eu prego que os insurretos avancem sobre as estrelas
desalojando os tiranos.

Olhando minhas mãos eu vejo a marca firme dos anos
e todo o desassossego das batalhas que travei.

Já fui escrava e vaguei
por um deserto infinito.
Carreguei pedras no Egito
para faraós soturnos erguerem seus mausoléus.
Em Rodes colaborei com a construção de um colosso
que protegia a cidade.
Lutei pela liberdade com os artifícios da cama.
Em Roma fui açoitada.
Da áfrica, sequestrada.
Em nossas praias vi corpos boiando em um mar escuro.
Vi tudo isso, mas  juro,
jamais pensei ver um dia escravos opcionais.

Não admito que seres
humanos que nascem livres
permitam que suas vidas
sejam subjugadas por elementos nocivos.
Eu amo o amor dos vivos.
Libertas quae será tamém.

V

-        Minhas pálidas mãos.
Uma estrutura complexa e flexível, feita de carne, cartilagem e ossos.
Uma concha, uma teia, uma garra especialmente construída
para o toque, para a carícia ou para o soco.

Mãos que pousam sobre o dorso dos que amam feito loucos
e percorrem os caminhos do corpo explorando os vãos.
Apenas um par de mãos.
Miúdas, velhas, estáticas.
Expostas e sorumbáticas
diante de um mundo turvo.

-        Não reconheço estas mãos, toscas,
que saltam, de forma brusca,
e estouram, mediocremente,
na flacidez do meu rosto.

Não são as mesma que outrora emprestavam-me encantos
percorrendo-me o corpo todo
em horas de solidão.

Não são as mãos cujos dedos desvirtuavam meu senso
colhendo vários sabores espalhados pelo mundo
e me trazendo na boca
sumos de tantos amores.

Olhando assim, como estão, parecem mãos que não tocam
nem mesmo acariciam corpos celestes no espaço.
Mas, no entanto meus dedos vagaram plenos, devassos,
por camas, becos e grutas
em noites agigantadas por gozo e sofreguidão.

-        Juro à você,
essas mãos,
esfregavam no meu rosto as coisas todas da vida. 
Amores, dores, odores,
sensações descalibradas de prazeres insensatos,
sentimentos abstratos de povo e de País.
São mãos de beleza e luta
Da destreza mais arguta
Mãos de pura habilidade
Mãos de santa e meretriz.
Com essas mãos fiz loucuras
e busquei a santidade.
Por elas tive vontade de caminhar pelas ruas
De brincar e ser feliz.
De correr o mundo todo...

Mãos que esfregadas no corpo
entranharam em minha pele um jeito estranho de ser.

Foram estas mão que me deram
toda a noção de poder
que ostentei em meus olhos
nos anos incandescente
que construíram minha glória.

Com essas mãos, eu compus a minha história.
Conquistei minha alforria,
Tatuei minha miragem, meu sonho e minha agonia
em pedras e pergaminhos para sempre condenados
à atravessar as eras .
Por elas vivi as guerras,
por elas verti paixões.

VI

A maior de todas as aventuras
decerto é a eterna procura
por amor e liberdade.
Livre.
Ser eternamente livre.
Canto livre, pátria livre, corpo livre.
Livre até para se subverter.
Deixar de ser canto, pátria, corpo.
Deixar de ser qualquer coisa previsível,
     amarrada, obrigatória e poder se transformar em nada,
caso queira.
Ou se transformar em água, carne, vinho...
A liberdade não pode ser um espinho
encravado no fundo
da nossa garganta,
tutelada por um contrato,
com tempo de duração
e condições pré estabelecidas.

A liberdade é a vida correndo no leito manso,
esplendoroso ou bravio
de um rio inexplicável.

É narrar o inenarrável da forma mais absurda.
VII

-        É proibido proibir! É proibido proibir!
Com canções assim, a alma balança.
É como se a febre da plenitude humana
penetrasse em cada poro,
cada pelo espalhado por cada pedaço do corpo.
É como se aquela alma sobressalente,
aquela que fica guardada em alguma gaveta do cérebro,
escondida,
para não nos fazer passar vergonha
em família e em sociedade,
pulasse de repente com gana e ferocidade
engolindo a outra alma.
     A alma morta.
A alma que querem
que a gente use no dia a dia.
Aquela alma certinha, coerente, sensata
e profundamente cretina.
Que se conforma,
adere à tudo e reza todos os dias
para as penas serem mais leves.
Aquela alma que age como um escravo açoitado
clamando ao seu senhor:
“Só mais uma, por favor,
só mais uma chibatada”.
É essa alma bem comportada que vê-se,
deliberadamente, tragada pela outra,
que aflora,
enquanto a canção nos invade.
Se formos traçar um delta entre um ser,
obediente,
e um outro,
libertário,
encontraremos um vasto, sutil e inexplorado
espaço a ser percorrido.
O primeiro tem o peito sufocado e dolorido.
Quando ri é sem encanto,
quando chora é trivial.
O outro tem no semblante a essência magistral
do guerreiro absoluto.

É Alexandre da Grécia passeando com bucéfalo,
semeando em vento bravo
os sonhos nunca sonhados.
Eu quero esse ser alado.
Esse Ícaro orgulhoso por suas asas derretidas.
Esse que, cantando a vida, desafiou o Deus sol.


VIII

-        É bom ser livre de tudo
e galopar sem receio
por toda a imensidão.
É bom carregar nas mãos
a sobriedade e a ternura.
Soltar a alma na rua
para que ela procure
sua própria identidade.
É bom, ao cair da tarde,
deixar o corpo voar
seguindo a trilha do vento.
É bom sentir o momento
em que a vida floresce,
torna-se plena e madura.

IX

-        As vezes uma saudade exótica
e incongruente convulsiona minha mente e eu me sinto perdida.
Já não posso olhar a vida como uma bela aventura.
É mídia, é Deus, é censura,
quase tudo me aporrinha,
amarra minhas mãos às costas
ou me impõe seus antolhos.
Na minha idade não posso nem mesmo erguer os olhos,
sem sentir o eterno medo de tomar uma porrada.
Maconha? Nem estragada.
Trombeta e cogumelo – a manita matutina –
viraram pó em saquinho
nos auto fornos da indústria
que envolve toda a cidade.
Sobraram fogos e balas.
É assim que os imundinhos,
que chegaram ao poder
se livram, solenemente,
de todo ser que atrapalha.

Meus olhos não são mais olhos
de ver paixão e poesia,
mas teleobjetivas, em aparelhos diversos,
amarfanhados nos bolsos,
da enorme e triste manada
que segue ao matadouro.

Quando se fala em boiada, logo se pensa no estouro.
Mas essa segue calada, feliz e domesticada.
Com os cérebros, ao que parece,
desplugados da tomada
geradora de emoções.
Ao invés de cantar canções,
rezam, embriagados,
para um Deus – livre mercado –
que os traga redenção.

Dinheiro, muito dinheiro.
E que se fodam os sonhos
acumulados nos olhos
de toda a humanidade.

X

Na verdade esse mundo
me parece dominado por um bando de covardes.
Ao invés de romper as grades
de sua própria prisão
vão inventando mil Deuses,
todos cruéis, como ingleses,
colonizando outras terras.

Um Deus que proíbe tudo.
Um outro que morre mudo e adora se abster;
Outro que conduz os tolos ao fundo do cadafalso.
E cada vez surgem mais
igrejas e templos falsos
para sugar almas novas,
moedas e obediência
da multidão que adota como seu eterno lema
o absurdo teorema
de que é pecado viver.

Idolatram os conceito de sofrimento e atraso
como forma de pureza.
Renegam a natureza e usam
de velhos mitos
como eficaz antídoto
contra o amor e o prazer.
Quem discordar ganha tiro,
morre de amor no exílio ou exclui-se do sistema.
Poema, pra que poema?.
Humanos são perigosos.
Viva a robotização.
    
     E tristemente a nação vai caminhando de lado
ao modo dos caranguejos.. .

-        Sempre que posso me vejo mudando
os rumos da história.
Arrebanho meus amigos e faço a revolução sem disparar uma bala.
Inverto os sons do sistema.
Modifico os programas.
Saboto a placa mãe.
Espalho um vírus do bem
por toda parte da rede
e salvo milhões de seres
das garras desses tiranos.
Impregno a matrix
com o germe do instinto humano,
abolindo a insanidade programada no sistema.
A pena é que, na verdade,
sou eu quem pareço insana
diante de toda a trama,
dessa mesmice pequena.


XI

-        As vezes uma angústia
portentosa e acachapante
invade meus aposentos e me deixa entristecida.
Jamais supus que viver fosse tarefa tranquila
à ponto de se deixar levar
e sorrir pra tudo.
Mas também não acho justo
que se tenha que enfrentar os monstros
o tempo todo.
Por isso equilibro o jogo.
Em meio a luta sorrio e mesmo sorrindo, luto.
Em tal jogo permaneço
até que o monstro me vença, ou fuja, pedindo  arrego.
Não importa se remoço
ou mesmo se envelheço.
Só me importa que meus braços
mantenham-se preparados para algum novo combate.
Se remoçar, quero arte.
Se envelhecer, quero um beijo.

XII

-        Das coisas todas do mundo
perdidas pra todo o sempre
o que mais me incomoda é o tempo jogado fora.

Acordem crianças ! Acordem !

Há um mundo vivo lá fora
precisando de vocês.
Rasguem a lição do dia.
Ignorem as advertências.
Explorem o corpo ao lado,
do amigo ou namorado,
e tomem o mundo nas mãos.

Já faz um tempo que a história
fugiu pra dentro da máquina.
Puxem ela pelas asas,
arreganhem suas pernas e bebam da sua fonte.
Corram, se multipliquem,
montem uma enorme mesa
de banquete e se sirvam
de tudo ao seu alcance.

Beijem, pulem, gritem, dancem.
Transformem este sanatório em um baita salão de festas.

-        Os imundinhos se prestam a coibir
seus instintos
em troca muita grana.
Mas poderosos não amam.
Então, mande-os ao inferno que eles próprios
inventaram para impedir que as flores
do planeta desabrochem.

Acordem crianças! Acordem!

No meio dessa agonia modorrenta, que dá nojo, há um baú
escondido com tinta, pincel, estojo,
lápis de cor e giz cera.

São acordes infinitos, bailarinas e atores, palhaços e trapezistas, poetas e escritores.

Há gente por toda parte ensaiando
um passo novo, por mais que eles insistam
em matar a alma humana.

É mentira o mundo triste, a que chamam realidade.
Crianças pelas calçadas vendendo a dignidade, bala perdida
voando em busca de um peito exposto,
a fome, a morte, a trapaça que se assiste em palácios
de governos e  mansões...
Esse bando de ladrões, trambiqueiros, vigaristas,
milhares de parasitas exercendo o poder...

Nada disso é a verdade.

A verdade esta, de fato, no belo beijo
estalado dado no lábio carnudo.
Nas mãos apalpando tudo
ventre, coxa, bunda, seio.
A verdade esta no veio de terra
que é cultivado
pelas mãos de um simples homem.

Está na feira, na fábrica, na praça aos fins de semana.
A verdade esta na cama de todo amante sincero
que trata o amor com esmero e atende aos seus caprichos.
Esta nos olhos dos bichos, nas paredes da oficina, no leito bravo do rio
que abastece a cidade.
A verdade está na tarde
caindo sobre as cabeças de quem passeia na rua.
No sol da manhã
Na lua.
Na claridade do fogo.

A verdade não é um jogo a que se possa dar pausa
como qualquer game boy.

E preciso reparar
em todas as suas nuances .
Nas pistas que ela nos deixa
pra que possamos acha-la.
Seja nos cantos da sala.
No centro oco do mundo.
Na rua.
Na genitália.
Na alma de um vagabundo.

A verdade grita tudo
com a boca escancarada
mas tem a voz abafada por cortinas de fumaça.

Rasgando essa carapaça
que nos serve de redoma, ficaremos frente a frente
com o olho nu da verdade.

Só nos basta boa vontade e um senso libertário pra fugir dessa mentira.

Acordem crianças, acordem!

Para além dessa porteira que nos mantem prisioneiros
existe um mundo inteiro onde se cultiva a vida.
Há sensações pululando na estrada ali em frente.
Quebrem os elos das correntes.
Mergulhem nessa lagoa, bela e desconhecida, oculta pelos temores.
Deixem vibrar em suas bocas a explosão dos desejos.
Permitam-se.
Libertem-se.

Caminhem por sobre as nuvens como sempre fazem
os seres que ignoram grilhões.

Que venham os jovens de agora
Passar a limpo essa história
Compondo novas canções.


XIII

-        Hoje eu acordei pensando em luzes.
Mas não em luzes de quartos,
de lâmpadas vacilantes, incandescentes, broxantes, fosforescente
ou algo qualquer que ilumine o corpo tão mal assim.

Pensei em luzes variadas, plenas, absolutas.
Poderosas na essência, mas que também não iluminam
as grutas em que os homens
se escondem quando tem medo
das estranhezas mundo.

Mas, mesmo assim quero luz.

Luz, quero luz.

A luz que faltou a Goethe
também se esconde de mim.

E deve ser só por isso, por falta de claridade, que as dores todas
me invadem, sacodem minhas entranhas, explodem nas minhas faces,
mas  não arrancam os disfarces
que sempre trago comigo
para os momentos difíceis.

Deve ser mais ou menos isso.
Alguma espécie de eclipse
particular e confuso que não me permite ver
com os olhos de toda gente.
Que não permite que a dor me doa naturalmente
assim como dói ao cão, ao mendigo, à prostituta
ou ao músico que não escuta a canção
que ele próprio compõe.

Meu modo de perceber
os dramas todos da terra é sempre tão diferente
que as vezes até considero se a natureza exagera
ou se  é  condescendente e boa demais comigo.

Eu poderia dizer que na verdade não ligo,
mas isso seria mentira, pois todas essas coisinhas,
no fundo, me incomodam.
Também queria que a droga da novela de TV
se inoculasse em meu sangue
para que eu, em rodas de papos falsos,
não me sentisse absurda.

Queria compartilhar com as mães profissionais
os problemas de família,
como a castração das filhas,
a exposição dos filhos, os reclamos dos maridos,
as tarefas da cozinha, da casa, da empregada,
a arte do amor de fachada,
a necessidade extrema de uma nova mobília...

Eu também queria, eu juro, viver de hipocrisia
rogando a todos os santos, mas somente para mim,
a felicidade plena, negada a minha vizinha.

E vejam bem, digo juro como prova irrefutável
de que quero adquirir os vícios vocabulares
de que todos fazem uso.

XIV

-        Apesar desses percalços
do comportamento falso,
das mega idiotices constatadas o tempo todo,
do amor pelo engodo desenvolvido no cerne de tanta  gente que vive
cultivando a esperança de ludibriar a vida,
me sinto cada vez mais jovem.
     Mas também me considero, às vezes, bastante envelhecida.

Já vivi tantas façanhas, vi tanta mediocridade, que fico muito
à vontade para opinar sobre tudo,
e exatamente por isso,
por ser jovem, velha, e dama
de meia idade,
é que trago no embornal enorme variedade de coisas a oferecer

Trago água de beber colhidas em muitas fontes, trago esmeraldas, diamantes, venenos e essências raras.
Eu trago todas as taras ousadas no mundo inteiro,
trago flores, trago cheiros
e misturado à isso tudo trago um universo de dores, de sorrisos e temperos impensáveis para alguns.
Na verdade permaneço boiando
no meio termo, entre o raro e o comum.

A anciã subversiva, a senhora permissiva e a moça sentimental
que prega revolução,
todas elas me são caras e impregnam minha alma
com pouquíssimos pudores e um gigantesco senso
de criação e liberdade. 

Na confusão das idades já nem sei se ser eu mesmo
revigora alma e corpo, estabelece conforto
ou simplesmente enche o saco.

Meu tempo é tão desconexo que já nem sei com certeza
se existe algo no espaço que referende, de fato,
tamanhas reflexões.

Navego entre tufões mas também vôo, tranquila, sob céus de brigadeiro.
Vem daí o desespero, creio,
e as alucinações, que me acompanham na estrada.

XV

-        De todas as qualidades
do tempo
a que mais vigora
e a que mais me apavora e ameaça meu intento,
é mesmo essa coisa bela,
mortífera e sacana
chamada envelhecimento.

Torna escassos os momentos, mas, do mesmo modo faz
com que percebamos cores em coisas que antigamente
nos pareciam banais.

Meus dedos velhos que ontem
costuram meu destino, hoje, puro desatino, não sabem mais o caminho
seguro à ser seguido.

Cozinho meias palavras.
O que não sei, adivinho.
Mas perco-me nessa estrada
     estranha e inacabada que se abre à minha frente.
Eu não posso ser mais nada.
Sei disso naturalmente.
Já perdi a cor da pele, dos olhos e dos cabelos.
Quebrei todos os espelhos e com eles meus reflexos.
Já sufoquei o meu sexo.
E agora, o que me resta, é um resquício de voz.
Eu uso e abuso da voz, tremida e vacilante.
E nesse parco instante, vocifero e vos suplico.
Eu grito à plenos pulmões
      Ergam os olhos.

Eu grito.
Levantem ambos os braços
Lutem até que seus trajes se transformem
em farrapos, como já fizeram muitos, em outras guerras travadas
na história da raça humana.

-        Empunhem vossas espadas como Zumbi dos Palmares
mas não se esqueçam, na luta, dos versos, dos Quintanares,
de Pasárgada e da Ilíada, de Aquiles e de Heitor.

Não deixem cair por terra, em meio à grande batalha, a ânfora em que se guarda o sonho justo dos guerreiros.

-        Lutem!
Mas lutem inteiros, com corpo e alma na luta.

Não permitam que a vitória escape
por suas bocas e nem que o aço da adaga retalhe seus sentimentos.

Lutar é acima de tudo revigorar-se por dentro.
É guerrear por amor à vida e a liberdade.

Por amor à humanidade embrenhar-se
em pelejas, em batalhas colossais, lembrando a boca
que beija e a mão que acaricia.
Lembrando o amor que vicia.

Endurecer, pero sim, perder la ternura, jamais.

-        Agora o sono me chega
Já não grito como antes
As mãos – sempre as mãos – me negam as batalhas mais vibrantes
e, tolas, fracas, se entregam
ao repouso do meu colo

Recolho armas e enrolo em paus as minhas bandeiras
Repouso em minha trincheira
aguardando o tempo certo
de reconduzir a flecha ao olho do inimigo.

Um dia rejuvenesço, volto a guerra e consigo
dar novo brilho as estrelas.

XVI

-        Por mais estranho que possa
parecer a quem me olha,
ainda cultivo desejos que a maioria ignora.
    
     Eu abro a boca e meu beijo
se espalha pelo planeta se impregnando nos corpos
que encontro sempre ao meu lado.
Ainda quero provar sabores mais apurados.
Quero por na minha boca
a polpa dos tantos frutos que permanecem escondidos.
Aqueles que ficam guardados
do lado escuro da lua,
impossíveis de alcançar.
Meu tato e meu paladar,
no entanto, mantêm-se atentos.
Farejo sabores no vento e vou a qualquer lugar
pelo prazer de sorver
o gosto de outros amores.

Gosto de crer que algum dia vou misturar em meu olhos as cores do arco íris.
Celebrar gozos felizes.
Verter mel sobre as pessoas.

Eu gosto da sensação de gozar alucinada
e dividir coisas boas com todos que me rodeiam.

Eu falo, de boca cheia, que a coisa que eu mais amo
nessa vida desumana
é viver a mais profana experiência de êxtase.

Ignoro a exegese e sempre mergulho mais.
Indo cada vez mais fundo.
O que eu quero é que o mundo
pulse sempre em um compasso
voraz e acelerado,
como o arfar dos meios seios.

Quero a flor dos devaneios na palma da minha mão.

Pode até ser um delírio, uma adoce enganação...
Mas sempre vejo estampado
nos olhos da madrugada
o clamor do meu desejo.
É o meu amor que viceja de forma destrambelhada
e o olho da noite, embaçado, quase nunca enxerga nada
do que acontece por dentro
da minha intensa paixão.

Eu quero lutar as guerras, desafiar muitas feras, defender a humanidade.
Mas antes quero a dosagem certa de amor e drama.
Quero, à partir de uma cama, lutar contra os indecentes.

Na verdade eu só quero
gozar tão sinceramente
que os tolos fiquem doentes
só de saber do meu gozo.

Quero que os poderosos
considerem horroroso
gozar tão feliz assim.

Eu quero que meu prazer
seja um grito apaixonado,
que o cheiro fique entranhado nas narinas dessa gente;
que eles lembrem para sempre do cheiro do  amor em mim.

XVII

-        Ainda me chamo Adélia
Confesso minhas loucuras
Sobrevivi ao holocausto, à solidão, à clausura
Sobrevivi a tortura sem perder minhas vontades
Equilibrei as vaidades e um turbilhão de desejos
na ponta dos dedos meus.
Fugi de todas as celas
Tantos cárceres privados...
Nasci, a bem da verdade, com um destino alado e voei sobre as cabeças
de todos os meus algozes

Ferozes, todos ferozes.

Mas quem bem me conheceu sabe melhor do que eu da extensão do meu drama.
A voz suave engana, mas as mãos ficam marcadas
e acabam contando tudo.

O rosto absorve traços
e se torna um quadro, mudo, retratando, ponto à ponto,
cada detalhe da história.

Hoje o que eu trago é glória.
Êxtase.
Superação.

Passei por todas as guerras sem,
nem sequer, abrir mão,
da minha sobriedade.

Eu amo a liberdade!

Escrevo com diamante
no centro do estandarte
que sempre trago comigo
esse lema,
e me obrigo,
a transformá-lo em verdade.
Sou, com prazer e vaidade, todas as fêmeas do mundo
que atravessaram desertos
e enfrentaram reinados.

Deixei meu amor marcado com a mão direita, na pedra,
e com a outra, a esquerda,
empunhei o meu machado em tantas e tantas guerras
que às vezes nem eu sabia os motivos do combate.

Horrores de parte a parte, presenciei em campanha.
Mas nem sempre estive em luta ou em batalhas de morte.
Já fui princesa na Espanha.
Amei um homem da côrte
do Rei São Luiz de França.
Encontrei uma criança em andrajos de hebreu
nas margens do rio Nilo.
Tratei estresse e fadiga de soldados do império.
Já condenei o adultério
e fui a outra na vida
de homens que conheci.
Em Troia fui o pivô de uma grande batalha.
A grande guerra de amor
que atravessou as muralhas
de uma cidade pacata
à custas de um mero engôdo.

E agora vôo de novo,
por sobre os céus das cidades,
e vejo como é imensa
e grave a desolação.
Em algumas falta pão,
em outras falta coragem.


-        Mas nem tudo está perdido
só precisamos parar
de olhar
nosso próprio umbigo,
redescobrir os amigos
e a velha capacidade
de sorrir e de sonhar.


XVIII

Quem sonha não vive só,
então, pode se apoiar
no ombro que está ao lado

Daqui mesmo, do tablado,
já se pode convocar
pessoas pra reagir.
Tem gente que vem da praça,
outros da arquibancada
alguns vem da madrugada
e outros do camarim.
Vem gente de todo canto,
do Rio e de São Paulo,
de Pernambuco, Manaus,
da Austrália e de Pequim.

A multidão se formando
As vozes se embolando
Os braços se levantando
Grito de guerra ecoando
Todos querem reagir

O povo, o preto e o pobre
A dama, o sujeito esnobe
A prostituta e o marido
A empregada e o faquir

Tem gente que vem de longe
de Londres e Nova York
gente que vem à reboque
de algum concerto de rock
beber o restinho aqui

E assim vai se juntando
a massa,
e o povaréu
vai descobrindo que a vida
vale mais que um troféu

Que o amor que a gente tem
não pode ser de aluguel

A plateia descobrindo
que também tem um papel
a representar na peça.

Nego coçando a cabeça
se descobrindo poeta

      E as meninas se tocando
misturando a silhueta
redescobrindo a faceta
de se deixar seduzir

E os meninos do planeta
dançando de boca aberta
estetas e não estetas
aprendendo a reagir

Tem gente de cara limpa
Velhinha, mulata e freira
rebolando as cadeiras
e aprendendo a reagir

Tem gente lá do nordeste
amolando a peixeira
tomando cana na feira
e aprendendo a reagir

Vem gente de todo lado
A moça vem do mercado
O moço vem da curimba
Tem gente que reza o terço
Tem gente que choraminga
Todo mundo nessa ginga
Aprendendo a reagir...

4 comentários:

  1. É com muito orgulho que digo conheço o Vicente, meu colega de sala, inteligente e muito legal.

    Parabéns, e tudo de bom, vou querer autografo.

    Beijos

    Denise Campos

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  2. Oi Denisinha....Obrigado pela visita, meu anjo. Espero que curta os textos.
    Beijão pra tu.

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  3. Bah, esse monólogo é cibernético, hahaha... Que viagem boa! Cheguei e já estou me abanando na estação. Não me convida para um suquinho?

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  4. Vamos lá Luciana...Já te espero com o suquinho na mão ..rs

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